quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Santos, 'Porgy and Bess' e a Osesp

George Gershwin
   Neste fim de semana estive assistindo a "Porgy and Bess", ópera de George Gershwin, letras de Heyward e Ira Gershwin, baseada no romance "Porgy" de DuBose Heyard. As peças da ópera foram executadas na praia do Gonzaga, em Santos - SP. É lá que a Osesp tem fechado suas temporadas nos últimos anos.
   Porgy and Bess é uma obra prima. É, talvez, a grande obra de Gershwin, compositor que procurou aproximar a música popular da música erudita. Por isso foi esnobado quando foi estudar na Europa, por isso sua ópera não foi considerada uma ópera "legítima" até 1976, mas também por isso, ousou em colocar os trabalhadores negros do sul dos Estados Unidos pela primeira vez nos papéis principais de uma ópera. Além disso, é musicalmente uma obra avançada, com elementos jazzísticos,  folclóricos, mas também com fugas, politonalismos e atonalismos. Sua peça mais famosa seguramente é "Summertime", que ficou mais conhecida não na versão da ópera, mas na voz de Ella Fitzgerald. 
   "Ora, e daí?" Pergunta a leitora mais afoita. E daí que essa execução suscitou uma série de perguntas e inquietações a respeito da música erudita, da Osesp, da obra de Gershwin.
   As questões passam, de modo geral, pela pertinência da música erudita, pela opção de repertório feito pela Osesp, pelo local do concerto (uma praia num bairro "nobre" de Santos), pelo teor machista de algumas passagens da obra.
   E aí, fiquei pensando, pensando e pensei assim:
   Não há dúvidas, talvez ninguém questione, que a classe trabalhadora está alienada de determinadas expressões de cultura (inclusive de determinados aspectos da cultura popular), que a ela só é dada a chance, muitas vezes, de se apropriar da cultura de massa, produzida pela indústria cultural com o único objetivo de obter lucro. Mas aqui, estamos falando do não acesso de trabalhadoras e trabalhadores à música erudita.
   E do que falo quando digo "cultura erudita"? Digo de uma cultura ligada à pesquisa, à experimentação, ao estudo de técnicas, história, metodologias etc. Ora, é claro que este tipo de cultura deve estar ligado à classe que detém o "privilégio" de acessar a pesquisa, a história, o estudo - a burguesia. 

Fechamento da temporada da Osesp em 2011
   Então, quando falamos de acesso popular à música erudita, estamos falando de acesso à educação, à universidade etc. E não que a música erudita só possa ser admirada por um grupo de iniciados, mas os referenciais estéticos tendem à média daquilo que se tem acesso.
   Nesse sentido, a ideia em si de levar a música de concerto para fora da sala de concerto é boa. Mas, se cruzarmos isto com o fato de que ocupação das ruas também tem um recorte de classe, a ideia pode não ser tão boa assim. Quem frequenta o Gonzaga? Ou melhor, quem tem direito ao livre acesso ao Gonzaga? A burguesia e a pequeno-burguesia. Ora, à classe trabalhadora só é dado acesso ao Gonzaga pelas entradas de serviço. Então é de se imaginar que na praia de um dos bairros burgueses de Santos (na verdade, com a escalada de preços propiciada pela especulação imobiliária é impossível imaginar um bairro proletário na orla de Santos) quem estará assistindo a um concerto (recorte da cultura acessado majoritariamente pelos burgueses) serão burgueses.
   Mas, apesar disso, pensemos no repertório escolhido: Uma pequena suíte (seleção de músicas) de Chico Buarque e "Porgy and Bess". Um repertório relativamente popular para um concerto. Mas o bastante para atrair as massas, ou ainda pequenas parcelas dela, para as areias do Gonzaga naquele domingo? Não.
   É inegável o valor de Chico Buarque. É inegável o valor de Porgy and Bess. Mas é inegável que acesso a cultura não se faz dessa forma. Não faz sentido que num estado onde não se ensina música nas escolas, um programa imagine que irá popularizar a música de concerto levando-a uma vez por ano à praia mais burguesa de uma das cidade mais elitistas do estado.
Gershwin
   Quanto a "Porgy and Bess", sim, ela tem elementos de machismo. Mas como as tem "Orfeu da Conceição" de Tom e Vinícius. Como as tem muitos dos sambas de Noel Rosa. Quem nega o grande poeta que foi Vinícius de Moraes? Mas quem nega que os versos de Receita de Mulher" sejam machistas ("As muito feias que me perdoem / Mas beleza é fundamental.")? Curiosamente, "Porgy and Bess", historicamente é acusada de racismo, de trazer um retrato estereotipado da comunidade negra estadunidense nos anos 1930. Não estou propondo que não olhemos com crítica para a obra. Não estou usando a desculpa de que é uma obra de seu tempo. Não estou tentando relativizar o machismo. Qualquer opressão deve ser combatida com todas as forças! O que estou dizendo é que a obra tem muitos elementos avançados, inclusive no questionamento à naturalização do estupro, por exemplo, e no reconhecimento da cultura negra do sul dos Estados Unidos como legítima... mas, sim, escorrega aqui e ali.
   De tudo isso, o que fica? Eu, pessoalmente, fiquei muito feliz de estar no Gonzaga ouvindo "Porgy and Bess". Gosto muito desta obra, gosto muito de Gershwin. Mas não posso fechar os olhos e me enganar de que a música erudita acaba este domingo sendo mais popular. Ela segue sendo propriedade de uma elite econômico-social, segue sendo inacessível à classe trabalhadora, e temo que isso seja uma das estratégias de dominação de uma classe sobre a outra.
   Abaixo "Summertime", com Ella Fitzgerald e Cecily Nall.


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