quarta-feira, 31 de outubro de 2012

poema no. 315

a companheira Katia Moreira
pensa que de um mundo extraordinário
surgirão poemas

pois o triste
companheira
é que o mundo todo (de fato)
é extraordinário

com seus artifícios todos de opressão
com suas brechas todas para o assassínio

do mundo pululam as situações extraordinariamente sangrentas
(só por hoje teremos de ter o temor)

e poemas
que diante do genocídio que se anuncia
que diante da fome que permanece para um bilhão de pessoas
que diante do capital que persiste apesar de nossa luta
são desnecessários

surgirão
a despeito de sua desnecessidade

sim
companheira
neste mundo extraordinário
esta matéria inerte
este corpo que não trabalha
esta ferramenta que não funciona
teima em surgir para nada

para nos sentirmos ordinariamente desnecessários

Outramento...


     Isabel Keppler é marxista e proprietária de um diploma em psicologia.

     Além disso, me ocorre agora que ela é militante do movimento de saúde e da organização trotskista Liberdade, Socialismo e Revolução. Me ocorre que ela é minha companheira e que ela escreve coisas tão belas que não me sinto a altura de comentar.

     Em Isabel Keppler, me outro. E outrar-se é impossível diante do ordinário. Outre-se em "Outramento..." reunião dos escritos outros de Isabel Keppler.

poema no. 314


em meu corpo
há os dias
e as horas
e cada segundo
estático
sozinho
em que deixei de viver
e só parei
fiquei parado
junto do segundo
parado

sobre minha pele
e sob ela
cada dobra é a prova
ou a denúncia apenas

mas este é um julgamento parcial

cada dobra é a prova
de meu longo esperar
por algo que não virá a acontecer

se ainda pareço moço
numa primeira análise
é que posso disfarçar as dobras de meu corpo
ou ainda posso rir
(embora risos denunciem pequenas imperfeições)

mas numa análise mais pormenorizada
notarás que minha barriga cresce e só cresce
que em minha barba a cor branca cresce e só cresce
que minhas mãos teimam em
cada vez mais
se parecer com as mãos de meu pai

que minha pele dobra
que meus joelhos dobram
que minhas nádegas dobram
que meu pênis dobra
que meus olhos dobram

sim
meus olhos
os duros e gélidos
os firmes e incisivos
meus olhos
os que não amam e sabem tudo
os meus olhos também se dobram

mas que esperar de olhos e pênis
se não que se dobrem
se não que se deixem encobrir por pele e sonhos
                                               por camadas e mais camadas de epiderme
                                                            e sonhos mortos

meus olhos e meu pênis
cumpriram sua função
e cumprirão no limite o seu destino

dobrar até que eu mesmo não seja mais que uma dobra
um mauricio dobrado
pronto pra ser jogado fora

terça-feira, 30 de outubro de 2012

poema no. 313

o poema que pensei
se perdeu

vazou pelo ralo do banheiro


com a água quente
e a sujeira de meu corpo

neste momento
o poema que pensei e se perdeu
deve estar solto
correndo em alguma corrente do atlântico sul
junto ao cocô ao xixi e ao papel higiênico usado (que tem gente que joga no vaso)
de todas as pessoas de praia grande
(menos as que moram no mangue e nas palafitas
que essas não possuem saneamento básico
e tem de conviver com seus excrementos)

não me lembro do tema
do poema
nem daquilo que me tocava
naquela noite estranha
sob o chuveiro
desperdiçando água quente

decerto era um poema

pois para nós
os que possuimos saneamento e água quente
fazer poemas
é mera banalidade formal

domingo, 28 de outubro de 2012

Porque telenovela não é arte

Isso não é uma obra de arte.
Nos últimos dias surgiu uma discussão sobre as inovações técnicas, estéticas e mesmo dramatúrgicas da novela "Avenida Brasil", da TV Globo. Os comentários partiam de sua qualidade enquanto obra de arte, passavam pelo álibi de ser uma obra de arte (para poder reproduzir livremente comportamentos opressores) e chegavam ao fato de, como uma obra de arte, atingir o objetivo de fomentar debates na sociedade civil. Pois bem. Para este blogueiro a discussão começa errada, pois parte do pressuposto de que telenovela é arte. Então vamos pensar nas quetões acima.

Em primeiro lugar, telenovela não é arte. Telenovela é produto cultural (este assunto já foi tratado neste blog aqui). Isso faz toda a diferença. Arte, como dizem Deleuze e Guattari, se mantem em pé sozinha. Ela existe em si. Embora ela se consume na presença do espectador, ela independe tanto deste quanto do artista. Ela está posta. Ela busca, muitas vezes uma desintaxe, uma inverossimilhança, pois sua concretude é alcançada na condição pré-adâmica da humanidade. Na arte, a linguagem explode.

Ora, é claro que "Avenida Brasil" não é isso. Nem telenovela nenhuma. Todas - todas - de "Roque Santeiro" a "Chiquititas" recorrem a uma estratégia muito disseminada na indústria - a pesquisa de opinião. Por que aquela embalagem de molho de tomate nos agrada tanto? Por que você diferencia o molho com manjericão do molho com queijo a metros de distância? Porque a indústria realiza pesquisas para descobrir qual embalagem funcionará antes de lançá-la no mercado. Com a telenovela é a mesma coisa. Mesmo antes de ser escrita, pesquisas são feitas para definir o tema, os atores, a cidade que servirá de locação. E após as filmagens iniciadas, mais pesquisas para se definir querm casa com quem, quem se dá bem, quem morre... Isso não é exatamente algo que exista em si.

Em segundo lugar, a arte pela arte não é álibi para a disseminação de comportamentos de opressão sexista. Assim, mesmo que partíssemos do pressuposto de que "Avenida Brasil" era uma obra de arte, ainda assim cabe uma discussão séria sobre a responsabilidade do artista em relação à sociedade em que se insere (Ferreira Gullar já levantava essa questão nos anos 70. Veja aqui). Mas, como telenovela não é arte, nem este frágil álibi lhe cabe. Assim, o que fica, é a indústria (cultural), reproduzindo comportamentos que mantenham a sociedade do modo em que ela se encontra e do modo em que ela vem lhe fornecendo lucro.

Em terceiro lugar, telenovela não é arte, é produto. Assim, ela não fomenta debates. Maurício de Sousa já disse algumas vezes que suas revistas não se metem em polêmica, pelo menos não de forma pioneira. Com telenovelas é a mesma coisa. Pense bem: se você tem uma barraca de picolés, e tem capital para investir em apenas um sabor, você fará picolés de limão ou de abobrinha? Empresas não arriscam. Empresas seguem o senso comum. O senso comum dá lucro, a crítica da prejuízo. Por isso, quando algum tema polêmico aparece numa telenovela, é que ele já não é mais tão polêmico. Claro, erros acontecem. E quando isso ocorre, de uma grande polêmica acontecer, a empresa, a indústria dá um jeito de consertar, como em "Torre de Babel", quando lá pelas tantas os autores explodiram um casal de mulheres que vinha causando asco no público.

Assim, de toda essa discussão, o que deve ficar é: telenovela não é arte. Qualquer discussão que se faça a respeito do tema, para este blogueiro, deve partir de outro pressuposto.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

poema no. 312 ou poema afetado

meu afeto
irresponsável
que me fere
que te fere

é ele que me põe feliz
se assim
fico só
(se me quedo
me afetando
e me ferindo)

e se irresponsavelmente
me afeto
(se não cuido do meu afeto
se debruço no meu afeto
só pra ser irresponsavelmente feliz)

sigo assim
afetado
afetadamente feliz
dando de ombros para o dia
em que me saberei
irresponsavelmente
irremediavelmente
irreversivelmente
ferido

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

poema no. 311

pouco falo
de meu falo
(de meu
pouco falo)

se falo é que
por meu falo
me calo

se me calo
quando falo
de meu falo
(de meu
pouco falo)
é que

em meu falo
não valho
mais que meu
pouco falo

domingo, 21 de outubro de 2012

poema no. 310

"O melhor lugar do mundo é aqui
E agora"
(Gilberto Gil)

o que tenho a dizer
não o direi
que isso não é hora
              nem lugar

seguirei sentindo e sabendo
mas mesmo o que sinto
       mesmo o que sei
                   o que sonho
                          e suo
                             (frio)

agora
aqui
diante deste pretenso pedaço de liberdade
ficarão aprisionados
que isto não é meio
             nem eu McLuhan

isto
tudo
o que não digo mais mas sinto e sei e sonho e suo frio
                                                    mas não agora e aqui       
ficarão reservados ao momento mais íntimo
de apreensão mais ordinária
de inquietação mais leviana e fugaz
de motivação mais displicente

àqui
àgora
estão reservadas as palavras mais despalavradas
                            os signos mais dessignificados
aqueles que não dirão nem sentirão
(mas que talvez
suarão(frio))
         

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

poema no. 309

ninguém mais
me beija a boca

minha boca anda triste
meio trêmula
meio sozinha

e ninguém a beija mais

porque não se beija
uma boca medrosa
e triste

só se beija
uma boca
com alegria

só se beija
uma boca sem medo

mas uma boca
sem medo
é uma boca fria

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

poema no. 308



"Dizem que é um colosso
Por dentro e por fora
É gente como a gente
A gente sente
Pois se aperta ela chora"
(Luiz Tatit)



não posso tudo
não posso nada
       posso mesmo muito pouco

(buscar água num
       poço

buscar bosta num
       fosso) mas se

não posso tudo
não posso nada
       posso mesmo muito pouco

por que
       ouço a mesma fala
                o mesmo falo
que me toca e me diz que
       posso
       posso
       posso (e então me
       torço)

                o que 
      posso
é saber o que
      posso
é saber que

não posso tudo
não posso nada
       posso mesmo muito pouco

(chorar a água de um
       poço

verter-me em bosta num
      fosso)

sábado, 13 de outubro de 2012

poema no. 307

se choro
é porque ainda sei chorar

ainda tenho em meu peito dores que existem apesar de mim
de você

que existem ao longo de mim e de você
e me impedem de ser o que quero ser
ou mesmo o que esperam que eu seja
ou mesmo o que eu espere que

se choro
é porque minha luta infantil
contra este mundo adulto e insano
não apresenta resultados concretos
e sim
talvez nunca os veja
talvez nunca aconteça
talvez só servirá para arrastar mais e mais
homens e mulheres e crianças (meninas e meninos) para uma luta infantil
contra este mundo adulto e insano

não é o seu desapreço por meu corpo
não é o seu desapreço por meus modos
não é o seu desapreço por meus medos
não é você

mas a vida
as condições de existência concretas
que me empurram
e resisto
e me empurram mais
e resisto
e resisto

se choro
é que a vida dói
com seus torniquetes
com seus dedos ferindo ainda mais as feridas
cutucando devagar as cascas ainda jovens
dolorindo e rindo

mas
a vida passa
não como passa um automóvel numa noite de sábado
não como passa uma dor

a vida passa
mas não passa como passa um pássaro na praia
alegórico
nem como passa um dia ou um tempo qualquer
em qualquer dia

passa
mas passa imóvel
quieta
inerte

como se não passasse
mas
passou

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

poema no. 306

a revolução proletária
internacional socialista

que nos fará livres de opressões
que nos fará livres de qualquer dominação de classes
que nos fará avançar sobre qualquer liberdade que em nenhum dia sequer sonhamos
que nos fará ver tanta beleza que nem sabemos
que nos fará ter tanta fartura
que nos fará gozar de tanto ócio
que nos fará viver e decidir viver

      nós a faremos

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