quinta-feira, 25 de abril de 2013

poema no. 354

na cama
ao teu lado
olho para o teto
e ele não é nada mais que o teto
descascado e úmido
de nosso quarto

como a cama mesmo
não é nada senão uma cama
que já foi de meu avô
de onde ele foi tirado e pra onde nunca mais voltou

os sapatos jogados
que são fora sapatos
a que se prestam os sapatos
meios sujos
meio furados
para além de sua existência como sapatos
como sujeira
como furos

os sapatos
que já carregaram significados complexos e diversos
neste momento não podem carregar nada
nem eu nem meus pés
nem qualquer coisa minha
que eu mesmo não carrego mais

e eu
que sou pra além de um corpo
ao teu lado
de um corpo que pesa na cama
já muito tarde
e teme
e treme
e (sim)
   freme

mas não mais como quem olhasse e visse outra coisa
outro mundo
mas como que olha e vê o teto

quarta-feira, 17 de abril de 2013

poema no. 353


Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
(Carlos Drummond de Andrade)

não há muito o que ser dito
tudo já foi dito
mil vezes
pra mil pessoas
em mil cenários
de mil maneiras
em mil línguas

ainda assim

poderia lançar mão de dois ou três
artifícios formais
e fazer um pequeno poema
(ou algo assim)
sobre o que foi a vida
(ou algo assim)
nos últimos meses
nos últimos dias

mas tenho a impressão
de que não há forma
formalidade
que dê conta
da dor
da cor torpe que tomou minha pele
meus pelos

poderia escrever três ou quatro versos vagos
mas
e a vaga que arrebentou
dilacerou
esfrangalhou
tudo

expor
abrir o meu peito
rasgar meu tórax e deixando passar
vazantes debulhadas e raivosas
(que de raiva e debulho estou cheio)
muito menos adianta
ou verte-se em arte

e que pode a arte

e por isso
é preciso que se lance mão da concretude
da palavra
saudade
da palavra
sozinho
da palavra
pronto-socorro
da palavra
suicídio
da palavra
medo
da palavra
mal-cheiro

lá fora as coisas seguem
sendo coisas e só
mais nada

a vida seguirá com
seus objetivos
apesar de qualquer delicadeza
que haja em meus olhos
a vida seguirá
com baixos salários
com sub-empregos
com crianças encarceradas

porque a vida não suporta amenidades
a vida
não suporta lirismos
como meus ombros
não suportam o mundo

quinta-feira, 11 de abril de 2013

poema no. 352 ou poema mudo

tem tanta coisa que eu sei
tanta coisa que eu sei
porque li
porque vi
porque fui sabendo de tanto dessaber
                             de tanto dissabor

mas aí acontece que eu me pelo de medo
por nada
por coisa besta
por exemplo se olho na janela
e lá fora tudo não mudou
como eu mudei
tenho medo do mundo se ele não muda
tenho medo de mim se me emudeço

e aí me sinto um tolo
eu que sei tanto
eu que li tanto
eu que tanto descobri de tanto duvidar

não sei como ter coragem
e mudar o mundo
como eu soube me mudar

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