sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Branca de Neve

Branca de Neve, João César Monteiro (2000)
     Anteontem, em dado momento de minha tarde, chega até mim, pelo celular, um trecho de Eduardo Galeano, do "Livro dos Abraços":
"Um homem dos vinhedos falou, em agonia, junto ao ouvido de Marcela. Antes de morrer revelou a ela o segredo:
- A uva – sussurrou – é feita de vinho.
Marcela Pérez-Silva me contou isto, e eu pensei: se a uva é feita de vinho, talvez a gente seja as palavras que contam o que a gente é."
     Ao mesmo tempo, ocorria diante de mim a experiência cinematográfica mais impressionante de que já tive notícia. Algo que não poderia imaginar que um dia veria sem que já o tivesse visto. Algo que não se explica com palavras, embora sejam palavras a sua matéria.
          Não sei descrever o que senti assistindo "Branca de Neve" (2000), filme de João César Monteiro. Costumo dizer, que em alguns momentos a vida escurece num êxtase, como se o sol se apagasse e o contato com o mundo exterior se interrompesse, ou só se desse por caminhos tortos. Pois ontem o mundo escureceu. Um filme sem imagens. Praticamente sem imagem alguma. Pouquíssimas imagens, e praticamente todas estáticas.
     Por algum tempo meu coração se apertou. Tive medo do que estava vendo. O medo do desconhecido. O ápice do estranhamento brechtiniano estava se realizando diante de mim, e eu o estava estranhando. Demorou para que eu conseguisse entender o que acontecia me distanciasse novamente e pudesse pensar sobre aquilo.

      "Talvez a gente seja as palavras que contam o que a gente é."


     Um filme só de palavras, foi o que fez João César Monteiro. Um filme sem imagens. Isso subverte a ideia mais imediata daquilo que se compreende por cinema - projeção de fotogramas de forma rápida e sucessiva de modo que se crie a ilusão de movimento. Não há movimento no filme de João César Monteiro. Ou há. Já que a película começa com uma errata, em que se pede desculpas ao espectador "aqui e agora  transformado em espetáculo". O espectador é retirado de sua zona de conforto e é intimado a realizar a obra. Logo me remeto à música de John Cage, 4'33'', que se resume a uma pausa de 4 minutos e 33 segundos. A música, segundo Cage, só se completa com os sons da plateia, tosses, pigarros, risos, vaias, o que for. O filme de Monteiro só se realiza com a ação intelectual do espectador.
     Está claro o que se busca, quando a personagem principal, Branca de Neve, diz em dado momento ao príncipe: “Não, diz, o que vês? Diz logo. Através dos teus lábios deduzirei o bonito desenho desse quadro. Se o pintasses, por certo atenuarias habilmente a intensidade da visão. Então, o que é? Em vez de olhar, prefiro escutar
     Ao mesmo tempo, Galeano me dizia pelo telefone que somos "as palavras que contam o que a gente é". Ora, não estou certo de que Monteiro tenha recorrido a Galenao para realizar sua obra (temo que não), mas é certo que elas se comunicam, como se comunicam as duas com 4'33''. A existência humana, enquanto interventora no mundo, sendo questionada e provocada a se realizar enquanto tal, enquanto ser que age.
     Contudo, não é somente por experimentos estéticos que se faz essa provocação em "Branca de Neve". A história também a estranhamos ao longo da "exibição". Já que, se num primeiro momento nos identificamos rapidamente com as personagens (Branca de Neve, Príncipe, Caçador, Rainha), logo percebemos que elas não se caracterizam da mesma forma que a construímos desde a infância, se mostrando mais complexas que o nível raso maniqueísta de "bem e mal".
     Enfim, não há muito como tentar explicar algo tão novo (embora já complete 13 anos). Ainda terei de ver "Branca de Neve" algumas vezes, e seguramente minha opinião se amadurecerá ao longo do tempo. Mas, por ora, o mundo segue escuro.

Abaixo, o filme completo.


   
   

Nenhum comentário:

Postar um comentário

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...