quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Prelúdio da Alegria

"O delírio do verbo estava no começo, lá

onde a criança diz: Eu escuto a cor dos

passarinhos."

 

"Que hei de fazer se de repente a manhã voltar?
Que hei de fazer?
— Dormir, talvez chorar"


Manoel de Barros

 

Cristina sempre cumpriu cada um dos dez mandamentos, leu continuamente um salmo por dia e doou mensalmente dez por cento de seu parco salário para o lar de velhinhos do bairro. Mas a vida não era lá muito justa com Cristina. O marido nunca – nunca! – chegou em casa sem antes parar no bar e gastar mais do que ganhara no dia, os filhos não eram exatamente o seu orgulho (na verdade dizia não tê-los), seu salário, descontados os dez por cento dos velhinhos, mal pagava o mercado. A vida realmente não era justa com Cristina.

Mas, quão resignada era Cristina! A vida, dizia ela, é uma incoerência, porque Deus, em Sua infinita misericórdia, nos traz todo tipo de infortúnio para testar nossa fé. Então – ela era muito resignada – quanto mais sofrimento, mais consolo. E, assim, sua vida cansada e resignada caminhava rumo à consolação.

Certa feita, Cristina dormiu. E, mesmo ela, sonhava. E como eram belos e felizes e doces os seus sonhos! Cristina via o sabor das palavras e sabia das verdades das minhocas. Pra além do concreto do seu quintal, Cristina podia ouvir a cor dos passarinhos. No entanto, os sonhos, mesmo os de passarinhos, terminam ao raiar do sol. Cristina acordou.

Tomou em uma das mãos uma garrafa de cachaça e sem que houvesse tempo para sentir muito remorso a quebrou na cabeça do marido que levantou assustado e, porque levantou, sentiu o gargalo afiado da garrafa lhe rasgando a garganta. Seguindo pelo corredor, respirando fundo, tratou de não ter os filhos que dizia não ter, e sem que houvesse tempo para muito arrependimento, sufocou o primeiro filho, cruzou o quarto e sufocou o segundo e o terceiro, porque acordou e, muito prudentemente, tentou atentar contra a mãe jogando o lampião em sua direção, teve o estômago e o coração perfurados.

À medida que a manhã seguiu com o sol cada vez mais alto e cada vez mais pessoas nas ruas de chão batido do bairro, Cristina deitou-se decidida a não lavar as roupas, a não esfregar e não torcer pelo dia da consolação. Mas resolveu que iria contemplar o fogo na cortina, deitar-se e talvez chorar.

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