Neste fim de semana estive assistindo a "Porgy and Bess", ópera de George Gershwin, letras de Heyward e Ira Gershwin, baseada no romance "Porgy" de DuBose Heyard. As peças da ópera foram executadas na praia do Gonzaga, em Santos - SP. É lá que a Osesp tem fechado suas temporadas nos últimos anos.
Porgy and Bess é uma obra prima. É, talvez, a grande obra de Gershwin, compositor que procurou aproximar a música popular da música erudita. Por isso foi esnobado quando foi estudar na Europa, por isso sua ópera não foi considerada uma ópera "legítima" até 1976, mas também por isso, ousou em colocar os trabalhadores negros do sul dos Estados Unidos pela primeira vez nos papéis principais de uma ópera. Além disso, é musicalmente uma obra avançada, com elementos jazzísticos, folclóricos, mas também com fugas, politonalismos e atonalismos. Sua peça mais famosa seguramente é "Summertime", que ficou mais conhecida não na versão da ópera, mas na voz de Ella Fitzgerald.
"Ora, e daí?" Pergunta a leitora mais afoita. E daí que essa execução suscitou uma série de perguntas e inquietações a respeito da música erudita, da Osesp, da obra de Gershwin.
As questões passam, de modo geral, pela pertinência da música erudita, pela opção de repertório feito pela Osesp, pelo local do concerto (uma praia num bairro "nobre" de Santos), pelo teor machista de algumas passagens da obra.
E aí, fiquei pensando, pensando e pensei assim:
Não há dúvidas, talvez ninguém questione, que a classe trabalhadora está alienada de determinadas expressões de cultura (inclusive de determinados aspectos da cultura popular), que a ela só é dada a chance, muitas vezes, de se apropriar da cultura de massa, produzida pela indústria cultural com o único objetivo de obter lucro. Mas aqui, estamos falando do não acesso de trabalhadoras e trabalhadores à música erudita.
E do que falo quando digo "cultura erudita"? Digo de uma cultura ligada à pesquisa, à experimentação, ao estudo de técnicas, história, metodologias etc. Ora, é claro que este tipo de cultura deve estar ligado à classe que detém o "privilégio" de acessar a pesquisa, a história, o estudo - a burguesia.
Fechamento da temporada da Osesp em 2011
Então, quando falamos de acesso popular à música erudita, estamos falando de acesso à educação, à universidade etc. E não que a música erudita só possa ser admirada por um grupo de iniciados, mas os referenciais estéticos tendem à média daquilo que se tem acesso.
Nesse sentido, a ideia em si de levar a música de concerto para fora da sala de concerto é boa. Mas, se cruzarmos isto com o fato de que ocupação das ruas também tem um recorte de classe, a ideia pode não ser tão boa assim. Quem frequenta o Gonzaga? Ou melhor, quem tem direito ao livre acesso ao Gonzaga? A burguesia e a pequeno-burguesia. Ora, à classe trabalhadora só é dado acesso ao Gonzaga pelas entradas de serviço. Então é de se imaginar que na praia de um dos bairros burgueses de Santos (na verdade, com a escalada de preços propiciada pela especulação imobiliária é impossível imaginar um bairro proletário na orla de Santos) quem estará assistindo a um concerto (recorte da cultura acessado majoritariamente pelos burgueses) serão burgueses.
Mas, apesar disso, pensemos no repertório escolhido: Uma pequena suíte (seleção de músicas) de Chico Buarque e "Porgy and Bess". Um repertório relativamente popular para um concerto. Mas o bastante para atrair as massas, ou ainda pequenas parcelas dela, para as areias do Gonzaga naquele domingo? Não.
É inegável o valor de Chico Buarque. É inegável o valor de Porgy and Bess. Mas é inegável que acesso a cultura não se faz dessa forma. Não faz sentido que num estado onde não se ensina música nas escolas, um programa imagine que irá popularizar a música de concerto levando-a uma vez por ano à praia mais burguesa de uma das cidade mais elitistas do estado.
Gershwin
Quanto a "Porgy and Bess", sim, ela tem elementos de machismo. Mas como as tem "Orfeu da Conceição" de Tom e Vinícius. Como as tem muitos dos sambas de Noel Rosa. Quem nega o grande poeta que foi Vinícius de Moraes? Mas quem nega que os versos de Receita de Mulher" sejam machistas ("As muito feias que me perdoem / Mas beleza é fundamental.")? Curiosamente, "Porgy and Bess", historicamente é acusada de racismo, de trazer um retrato estereotipado da comunidade negra estadunidense nos anos 1930. Não estou propondo que não olhemos com crítica para a obra. Não estou usando a desculpa de que é uma obra de seu tempo. Não estou tentando relativizar o machismo. Qualquer opressão deve ser combatida com todas as forças! O que estou dizendo é que a obra tem muitos elementos avançados, inclusive no questionamento à naturalização do estupro, por exemplo, e no reconhecimento da cultura negra do sul dos Estados Unidos como legítima... mas, sim, escorrega aqui e ali.
De tudo isso, o que fica? Eu, pessoalmente, fiquei muito feliz de estar no Gonzaga ouvindo "Porgy and Bess". Gosto muito desta obra, gosto muito de Gershwin. Mas não posso fechar os olhos e me enganar de que a música erudita acaba este domingo sendo mais popular. Ela segue sendo propriedade de uma elite econômico-social, segue sendo inacessível à classe trabalhadora, e temo que isso seja uma das estratégias de dominação de uma classe sobre a outra.
Abaixo "Summertime", com Ella Fitzgerald e Cecily Nall.
lila pensa que sou um poeta
que sinto e sofro mais que as pessoas todas
(inclusive você e lila)
que sou sensível
e em mim
as dores doem mais
e tudo é intenso e louco
mas o que lila não sabe
é que isso tem pouco a ver com poemas
(que deleuze diz
deve libertar o sentido
de suas representações
deve desconstruir
significantes)
tudo isso que se absurda em mim
tem pouco a ver com sentidos
e significantes
isso
essa coisa
que ocorre quando estou e não
ao seu lado
é uma bobeira
uma desminhoquice de cabeça
que qualquer hora passa
não farei o poema de minha tristeza
minha tristeza não cabe no poema
tampouco farei o poema
onírico
de ventos que uivam
de folhas cortantes de cana verde
de cabras imaculadas
meu poema não é de sonhos nem de dor
não farei o poema de meu imenso amor
sobre o meu amor intenso e imenso
não porque ele não caiba no poema (e não cabe)
mas porque ele já não cabe em mim
meu poema será sobre nada
sobre o vazio
sobre a ausência
que se encerra
em mim
a vila margarida é um bairro proletário
próximo ao mar pequeno
muitos dos proletários e proletárias
(também há proletárias na vila margarida)
desconhecem
o significado da palavra 'proletário'
muitos
só tem pra si o vocabulário proletário
que não possui via de regra o vocábulo 'proletário'
mas os proletários e proletárias da vila margarida
sabem o que é ser proletário e proletária
porque a condição proletária acontece
na pele
no rosto
nos olhos
do proletariado
acontece no chão em que ele pisa
que se encharca de água e esgoto quando chove
(sim
em bairros proletários chove esgoto
e encharca de esgoto o pé proletário)
acontece na frágil inviolabilidade do lar proletário
acontece na frágil inviolabilidade da vida proletária
o proletariado sabe de sua condição proletária
quando seus filhos (mais até que suas filhas)
morrem
assim
só por morrer
só porque são proletários
e moram na vila margarida (um bairro proletário)
e porque morrem
e porque são proletários
e porque viviam num bairro proletário (a vila margarida)
onde chove esgoto e as paredes se parecem com cavaletes
em casa
onde a vida é cercada
por lanças e por um cão
e onde
a não ser por umas janelas
a visão de quem está fora
é vedada
a verdade custa a entrar
a luz dos monitores não permite enxergar com precisão
o que ocorre além dos monitores
e eis que
quando se descobre
que pessoas estão sendo mortas
aos montes
a cada dia
às dezenas
elas já morreram
e já não se pode fazer nada
e quando se descobre que pessoas
tem o lar violado
aos montes
violentamente
por brutamontes
e seus rostos espancados
já foram os lares violados
os rostos espancados
e nada foi feito
nem será
a verdade
numa casa hermética como as deste bairro
quando chega
já é um caso
história
(mesmo que esteja acontecendo agora)
a companheira Katia Moreira
pensa que de um mundo extraordinário
surgirão poemas
pois o triste
companheira
é que o mundo todo (de fato)
é extraordinário
com seus artifícios todos de opressão
com suas brechas todas para o assassínio
do mundo pululam as situações extraordinariamente sangrentas
(só por hoje teremos de ter o temor)
e poemas
que diante do genocídio que se anuncia
que diante da fome que permanece para um bilhão de pessoas
que diante do capital que persiste apesar de nossa luta
são desnecessários
surgirão
a despeito de sua desnecessidade
sim
companheira
neste mundo extraordinário
esta matéria inerte
este corpo que não trabalha
esta ferramenta que não funciona
teima em surgir para nada
Isabel Keppler émarxista e proprietária de um diploma em psicologia.
Além disso, me ocorre agora que ela é militante do movimento de saúde e da organização trotskista Liberdade, Socialismo e Revolução. Me ocorre que ela é minha companheira e que ela escreve coisas tão belas que não me sinto a altura de comentar.
Em Isabel Keppler, me outro. E outrar-se é impossível diante do ordinário. Outre-se em "Outramento..." reunião dos escritos outros de Isabel Keppler.
em meu corpo
há os dias
e as horas
e cada segundo
estático
sozinho
em que deixei de viver
e só parei
fiquei parado
junto do segundo
parado
sobre minha pele
e sob ela
cada dobra é a prova
ou a denúncia apenas
mas este é um julgamento parcial
cada dobra é a prova
de meu longo esperar
por algo que não virá a acontecer
se ainda pareço moço
numa primeira análise
é que posso disfarçar as dobras de meu corpo
ou ainda posso rir
(embora risos denunciem pequenas imperfeições)
mas numa análise mais pormenorizada
notarás que minha barriga cresce e só cresce
que em minha barba a cor branca cresce e só cresce
que minhas mãos teimam em
cada vez mais
se parecer com as mãos de meu pai
que minha pele dobra
que meus joelhos dobram
que minhas nádegas dobram
que meu pênis dobra
que meus olhos dobram
sim
meus olhos
os duros e gélidos
os firmes e incisivos
meus olhos
os que não amam e sabem tudo
os meus olhos também se dobram
mas que esperar de olhos e pênis
se não que se dobrem
se não que se deixem encobrir por pele e sonhos
por camadas e mais camadas de epiderme
e sonhos mortos
meus olhos e meu pênis
cumpriram sua função
e cumprirão no limite o seu destino
dobrar até que eu mesmo não seja mais que uma dobra
um mauricio dobrado
pronto pra ser jogado fora
neste momento
o poema que pensei e se perdeu
deve estar solto
correndo em alguma corrente do atlântico sul
junto ao cocô ao xixi e ao papel higiênico usado (que tem gente que joga no vaso)
de todas as pessoas de praia grande
(menos as que moram no mangue e nas palafitas
que essas não possuem saneamento básico
e tem de conviver com seus excrementos)
não me lembro do tema
do poema
nem daquilo que me tocava
naquela noite estranha
sob o chuveiro
desperdiçando água quente
decerto era um poema
pois para nós
os que possuimos saneamento e água quente
fazer poemas
é mera banalidade formal
Nos últimos dias surgiu uma discussão sobre as inovações técnicas, estéticas e mesmo dramatúrgicas da novela "Avenida Brasil", da TV Globo. Os comentários partiam de sua qualidade enquanto obra de arte, passavam pelo álibi de ser uma obra de arte (para poder reproduzir livremente comportamentos opressores) e chegavam ao fato de, como uma obra de arte, atingir o objetivo de fomentar debates na sociedade civil. Pois bem. Para este blogueiro a discussão começa errada, pois parte do pressuposto de que telenovela é arte. Então vamos pensar nas quetões acima.
Em primeiro lugar, telenovela não é arte. Telenovela é produto cultural (este assunto já foi tratado neste blog aqui). Isso faz toda a diferença. Arte, como dizem Deleuze e Guattari, se mantem em pé sozinha. Ela existe em si. Embora ela se consume na presença do espectador, ela independe tanto deste quanto do artista. Ela está posta. Ela busca, muitas vezes uma desintaxe, uma inverossimilhança, pois sua concretude é alcançada na condição pré-adâmica da humanidade. Na arte, a linguagem explode.
Ora, é claro que "Avenida Brasil" não é isso. Nem telenovela nenhuma. Todas - todas - de "Roque Santeiro" a "Chiquititas" recorrem a uma estratégia muito disseminada na indústria - a pesquisa de opinião. Por que aquela embalagem de molho de tomate nos agrada tanto? Por que você diferencia o molho com manjericão do molho com queijo a metros de distância? Porque a indústria realiza pesquisas para descobrir qual embalagem funcionará antes de lançá-la no mercado. Com a telenovela é a mesma coisa. Mesmo antes de ser escrita, pesquisas são feitas para definir o tema, os atores, a cidade que servirá de locação. E após as filmagens iniciadas, mais pesquisas para se definir querm casa com quem, quem se dá bem, quem morre... Isso não é exatamente algo que exista em si.
Em segundo lugar, a arte pela arte não é álibi para a disseminação de comportamentos de opressão sexista. Assim, mesmo que partíssemos do pressuposto de que "Avenida Brasil" era uma obra de arte, ainda assim cabe uma discussão séria sobre a responsabilidade do artista em relação à sociedade em que se insere (Ferreira Gullar já levantava essa questão nos anos 70. Veja aqui). Mas, como telenovela não é arte, nem este frágil álibi lhe cabe. Assim, o que fica, é a indústria (cultural), reproduzindo comportamentos que mantenham a sociedade do modo em que ela se encontra e do modo em que ela vem lhe fornecendo lucro.
Em terceiro lugar, telenovela não é arte, é produto. Assim, ela não fomenta debates. Maurício de Sousa já disse algumas vezes que suas revistas não se metem em polêmica, pelo menos não de forma pioneira. Com telenovelas é a mesma coisa. Pense bem: se você tem uma barraca de picolés, e tem capital para investir em apenas um sabor, você fará picolés de limão ou de abobrinha? Empresas não arriscam. Empresas seguem o senso comum. O senso comum dá lucro, a crítica da prejuízo. Por isso, quando algum tema polêmico aparece numa telenovela, é que ele já não é mais tão polêmico. Claro, erros acontecem. E quando isso ocorre, de uma grande polêmica acontecer, a empresa, a indústria dá um jeito de consertar, como em "Torre de Babel", quando lá pelas tantas os autores explodiram um casal de mulheres que vinha causando asco no público.
Assim, de toda essa discussão, o que deve ficar é: telenovela não é arte. Qualquer discussão que se faça a respeito do tema, para este blogueiro, deve partir de outro pressuposto.
ainda tenho em meu peito dores que existem apesar de mim
de você
que existem ao longo de mim e de você
e me impedem de ser o que quero ser
ou mesmo o que esperam que eu seja
ou mesmo o que eu espere que
se choro
é porque minha luta infantil
contra este mundo adulto e insano
não apresenta resultados concretos
e sim
talvez nunca os veja
talvez nunca aconteça
talvez só servirá para arrastar mais e mais
homens e mulheres e crianças (meninas e meninos) para uma luta infantil
contra este mundo adulto e insano
não é o seu desapreço por meu corpo
não é o seu desapreço por meus modos
não é o seu desapreço por meus medos
não é você
mas a vida
as condições de existência concretas
que me empurram
e resisto
e me empurram mais
e resisto
e resisto
se choro
é que a vida dói
com seus torniquetes
com seus dedos ferindo ainda mais as feridas
cutucando devagar as cascas ainda jovens
dolorindo e rindo
mas
a vida passa
não como passa um automóvel numa noite de sábado
não como passa uma dor
a vida passa
mas não passa como passa um pássaro na praia
alegórico
nem como passa um dia ou um tempo qualquer
em qualquer dia
não porque de si
irrompa o desacordo verbal
não porque em si
a linguagem desmorone
não porque em si
as palavras amoleçam e escorram
não porque de si
escoe o sentimento pleno de rebeldia
um poema mudo
por ser mudo só
por não saber
por não poder
por não caber
o homem
que por nenhum motivo importante era preto
me xingava
e direcionava a mim gestos obscenos
é que não dei a ele o real que ele pediu
(eu disse que não tinha)
embora o tivesse
de fato
estou em dificuldades financeiras
não tenho podido ir ao cinema com frequência
nem comprar refrigerante todos os dias
mas eu podia dispor de um real
dois talvez
e dar ao homem
(que estava sujo
sem nenhum motivo aparente)
de fato
não será um real
(ou dois)
que resolverá a sociedade de classes
que resolverá a questão social
mas para o homem
que sem motivo qualquer usava as vestes rotas
que seguramente conhece pouco de marxismo
parecia importante que eu lhe desse
um ou dois de meus reais
As peras, no prato, apodrecem. O relógio, sobre elas, mede a sua morte?
(Ferreira Gullar)
a vida segue
nós seguimos
juntos
e assim vida e nós
parados um com o outro
mas em dado momento
a vida avançou
(ou nós)
nos distanciamos
e quem podia prever
e quem podia notar
se parados
se distraídos com tanta coisa
com o mundo todo em sofrimento
com o capital alienando o mundo todo em sofrimento
com o cotidiano afogar-se em contas e tentar viver apesar delas
com o esperar do ônibus do trem do trólebus do metrô e de outro ônibus
(no ponto de táxi
pois é mais seguro)
a vida seguiu mais rápido (ou nós)
e eu te amo desesperadamente
e a vida segue mais rápido (ou nós)
não sei o que te dizer
não sei o que me dizer
não sei se há algo a ser dito
ou feito ou esperado
não quero ser saudosista
não quero mais dor nem me ater à vida
quero que tudo acabe
se você é tão bonita
e tem a inteligência que não tenho
que entre nós brota o desacordo
se você sabe de mim
tanto que me assusto
e nem posso fingir com dignidade
se dentro de você
tenho perigosas
paradas cardiorrespiratórias
e dentro de mim
você produz
toda a espécie de delírios
se você me provoca
e me faz pensar
e estranhar as coisas
por que esse desacordo
que por vezes nos leva a crer
que tudo irá acabar
esse desacordo que nos proíbe
Aline Cristina Lourenço
quando eu tinha
12 anos e você 11
você era a pessoa mais bonita do mundo
não que houvesse concretamente qualquer
coisa de extraordinário
contudo
e não sei como nem quando
você se tornou uma luz
e mundo tornou-se turvo para mim
(tudo era extremamente ordinário
mas com 12 anos
o amor é mais fácil e raso)
nada importava
apenas me apaixonar por você
não jogava bola
para me apaixonar por você
não comia cachorro quente
para me apaixonar por você
não tomava suco de soja
para me apaixonar por você
não fazia as lições
não entrava no laboratório
não tomava o meu ônibus
só
para me apaixonar por você
a vida era dura
e se rasgavam diante de mim
todas as verdades pequeno burguesas que me faziam existir
mas tudo era turvo
e um dia você usou um boné
e um dia você usou uma camisa do Santos F.C.
e um dia você lavou os cabelos
e jogou vôlei
e revelou a paixão de sua amiga por mim
e beijou o rapaz mais legal da turma
e meu coração enamoradamente pequeno burguês
se rasgava
se rasgava
só
que hoje
quando somos adultos
e não sei mais de você
quando tenho menos coração
e sou menos pequeno burguês
quando a vida ainda é dura
menos comigo
e mais com a minha classe
você é apenas uma lembrança
Uma doidera só, aquilo que ele propõe com seu violão de 10 cordas, com sua flauta de PVC, com seu piano de todos os sons. E ele diz tudo fácil. Tudo simples.
Mas o mais bonito, sai de sua cabeça e entra na nossa. Talvez não passe por suas mãos ou por seu pescoço que requebra enquanto elas executam. Mas saia voando direto de sua cachola para a nossa. Como Água e Vinho.
é esta vontade de mudar tudo
este querer tudo
e todos
esta vontade de beijar desesperadamente
todos os homens e mulheres que amo
desesperadamente
de correr
(correr correr de verdade sem metáfora)
seguramente em direção a algo
com o fôlego que não tenho
de ouvir água e vinho até o fim dos tempos
se é que haverão
de escrever harão
de escrever tudo o que hará de não existir
de falar outra língua
de falar a não língua que busco e não encontro para escrever
de calar-me e ficar calado
quietinho quietinho miúdo
pensando pensando
essa vontade de ter vontade
vontades
maiores que eu
maiores que tudo
que sobrarão além de mim
e que as darei a alguém
que harão de sacia-las sobre o chão em que estarei sob
é estar em lugares diferentes
não porque se quer
(necessariamente)
mas porque se está
existe uma tristeza
uma mágoa
uma nódoa
numa ferida que talvez não deixe de existir
que talvez para sempre se faça lembrar
(e já sabíamos que existiria)
mas porque existe
e porque nos faz distantes
(nós
que nos amamos
- a palavra amor tão rara no poema -
que nos sabemos tão bem quanto não deveríamos
que nos ferimos e nos curamos
que nos destruímos e renascemos
que nos vemos onde não estamos)
irei cutuca-la com a unha
mesmo que suja
mesmo sob o risco de infecções
mesmo sob o risco de qualquer gangrena ou a perda de um membro
estar e não estar
estar para si
como estou para si (ausente) estar noutro plano
estar plano
(estar dentro de limites
estar dentro de fronteiras
estar com bordas visíveis e fáceis de serem encontradas)
a baixada santista quando vista da serra do mar à noite é escura
a despeito de suas luzes e as de seus carros a despeito das chamas da refinaria da petrobrás em cubatão ou das lâmpadas acesas da usiminas que precisa ter operários produzindo toda a noite mesmo dos altos postes que iluminam a praia para que não cesse o banho dos banhistas e se assemelham a discos voadores (se vistos sem óculos) ou dos neons acesos nos clubes da ilha porchat ou faróis que avisam os navios onde há terra ou dos navios que navegam acesos pela baixada (sobretudo se farão cruzeiros) a despeito das tevês todas ligadas a despeito das lanternas dos guardas no CDP de praia grande ou das lâmpadas sempre acesas no corredor da casa do adolescente ou das fogueiras que ocorrem no inverno no centro de santos e ao longo da via expressa sul
a baixada santista quando vista da serra do mar à noite ou mesmo de dia é escura
desculpe
a importância está cá dentro
as explosões
estão todas cá
nada morreu
senão eu
e o que eu fui
senão eu
e o que eu não fui
e nada morrerá
a não ser eu
e o que eu não for
ainda estão cá
todas as lágrimas
e todo o doce salobre
sobre o mel
estão aqui todos os tremores
e a mudez que se precipita em sua nudez
todos os versos estão cá
o desejo de tua umidade
o precipício que se abre quando estou no beco
que é seu corpo
(quero dizer que poemas não surgem de uma essência apaixonada e incauta mas de um intenso e preciso processo de transformação da natureza a partir de um devaneio prévio)
não sou iluminado
suo fatigado
cada letra pesada
que carrego
cada vírgula que arranco
cada bocado de sujeitos que preciso ausentar de predicados
minha querida amiga
o que dizer neste momento
em que a vida se embrutece
e irrompe em dor e
dúvida
se houvesse o que ser dito
talvez dissesse que a vida
não deve ser um processo
mas uma explosão de urgência
que tudo é urgente e
nada pode esperar ou que
a vida é mais que sabê-la
e pensa-la
a vida é muda-la
(a vida é mudar a vida)
e é certo que você sabe
e é certo que você a vive
(pois você a muda)
assim
o que dizer que você não saiba
o que dizer que possa mudar a vida
(poemas não mudam a vida
é a nossa luta
dolorida e dolorida
que o faz)
lutar contra o que sou contra o que sempre fui (e talvez a despeito de nossa luta e de meu desejo contra o que eu sempre seja) é a luta a que não posso me negar lutar
não posso porque alguns fronts só eu os alcanço
e então quando diante de todos e todas ou tod@s surge aquela piada aquele escárnio aquele olhar de quem pode sobre quem não pode
é que estou perdendo
(mesmo que diante do garçom me recuse a aceitar a conta)
é que quando ela fala
eu digo o que eu ia dizer
e não preciso mais
(parece que minha amiga
a companheira nayara moreira gatti
sabe o que penso)
claro que pode ser apenas coincidência
ou a consequência de uma formação política com muitos termos em comum
mas na minha cabeça
só fica o calor que me produz a fala da companheira -
a minha amiga nayara moreira gatti
realidade
é a dureza
de ter frio e fome
e perder filhas
e filhos
por frio e fome
nenhuma canção
nenhum poema
nenhuma fotografia de belos corpos felizes e expostos
mudará a dureza
de ter frio e fome
e perder filhas
e filhos
por frio e fome
mas algo em mim
algo que sofre e que refuto
me quer em devaneios
e em colapsos
algo em mim me faz acreditar
que poemas verterão milho dos versos
que canções cobrirão corpos em tremor
Apesar do aparente fracasso (sim, perdi para a cotidianidade da vida), resolvi acabar a série "um poema por dia" com o mínimo de dignidade.
Assim, daqui pra adiante, seguiremos com um poema por dia, até completar o no. 366.
Talvez não consecutivos. Talvez leve mais de 366 dias. Mas chego lá.
Faz muito tempo que este blogueiro não escreve nada (não aqui).
Mas,depois de tanto tempo, digno-me a vir aqui e recomendar um blog bem bacana: Outro Brasil (para acessar clique aqui).
Em "Outro Brasil", Alceu Castilho faz jornalismo do melhor modo possível: livre.
Vale a pena.